segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Quem precisa de remédio?


Para especialistas, a banalização dos diagnósticos – como hiperatividade e dislexia – e da medicalização ajuda indústria farmacêutica e esconde má qualidade do ensino
Por: João Correia Filho e Cida de Oliveira

Publicado em 14/10/2011
Se tivesse nascido nos últimos dez anos, o Menino Maluquinho, personagem do cartunista Ziraldo, criado em 1980, poderia ser diagnosticado como hiperativo, ou portador de transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH). É muito provável também que lhe fosse receitado medicamento à base de metilfenidato, como Ritalina, para controlar sua agitação e impulsividade – exatamente como acontece hoje com crianças com comportamento semelhante.
Transtornos neurológicos como esse têm sido cada vez mais diagnosticados no Brasil. Segundo a Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA), entre 3% e 5% das crianças em todo o mundo sofrem do distúrbio, cujos principais sintomas são falta de concentração, impulsividade, ansiedade e dificuldade de planejar tarefas a longo prazo.
Coincidência ou não, a venda de Ritalina cresceu 1.615% só na década passada, segundo o Instituto de Defesa dos Usuários de Medicamentos. O Brasil é o segundo maior consumidor da droga no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Dados da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, por exemplo, apontam a venda de 150 mil unidades do medicamento na capital paulista apenas nos primeiros cinco meses deste ano, compondo uma média mensal quase duas vezes maior que a do ano passado. Os números alimentam uma polêmica que envolve a indústria farmacêutica, põe em xeque pesquisas científicas e divide médicos e psicólogos.
A professora Maria Aparecida Moysés, do Departamento de Pediatria da Universidade de Campinas (Unicamp), vê com reservas esse aumento­ dos diagnósticos. “Os laboratórios financiam parte das pesquisas e apoiam entidades que dão aval a tais conclusões”, denuncia a pediatra, uma das pioneiras na luta contra a medicalização no Brasil. O movimento conta com a crescente adesão de médicos, psicólogos e outros profissionais da saúde, como a equipe do Programa de Atenção à Adolescência do Centro de Saúde Escola Samuel Barnsley Pessoa, ligado à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
A médica sanitarista Mariana Arantes Nasser, coordenadora do programa, afirma que é um exagero transformar comportamentos diferentes do padrão imposto em doença, passível de medicação e de acompanhamento excessivo com psicólogos, fonoaudiólogos e outros profissionais. E vai além: “A Ritalina, muito prescrita a crianças pequenas, não foi estudada o suficiente quanto aos efeitos a longo prazo. Ou seja, nem sabemos se a doença existe mesmo e usamos um remédio que nem sabemos se é seguro a longo prazo”.
Não é fácil para uma pessoa que tem um comportamento considerado diferente ser taxada de doente
Geração ritalina (foto: © João Correia Filho)
A sanitarista explica que a medicalização é preocupante também porque estigmatiza. “Não é fácil para uma pessoa que tem um comportamento considerado diferente ser taxada de doente por um profissional da área, principalmente um médico. É como ser chamada de anormal. A saúde tem de transformar a realidade, e não o contrário”, ressalta.
Do outro lado da polêmica, o psiquiatra Antonio Geraldo da Silva, presidente­ da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), considera o aumento de casos diagnosticados do transtorno uma decorrência do maior acesso da população à informação sobre as doenças e do conhecimento dos sintomas por pais e professores. “Quanto mais precoce o diagnóstico, o tratamento começa mais cedo e é mais fácil curar. Por que esperar o problema se agravar para tratar?”, questiona. “É como o caso do doente cardíaco. Vamos esperar que ele tenha um infarto para só então tratar?”, compara.
Segundo Silva, o avanço da medicina permite ao médico identificar sintomas que diferenciam o transtorno de hiperatividade de outras doenças, tratando de maneira adequada e segura, com medicamento específico, associado ou não a psicoterapia. O distúrbio é reconhecido como doença pela Organização Mundial da Saúde e em alguns países, como os Estados Unidos, portadores são protegidos por lei que garante tratamento diferenciado na escola.

Epidemia?

Transtorno que dificulta a aprendizagem da leitura e da escrita, a dislexia também tem crescimento nas notificações. Conforme a Associação Brasileira de Dislexia (ABD), entre 5% e 17% da população mundial sofre desse mal que, assim como a hiperatividade, tem origem genética. No entanto, para muitos especialistas, essa estimativa é suspeita. “Na medicina, é absurdo pensar em porcentagens tão altas para um problema genético, quando o normal são taxas como 1 por 10 mil, 1 por 100 mil, 1 por milhão. Se reais, esses números indicariam que estamos diante de uma verdadeira epidemia de distúrbios com origem cromossômica”, analisa Maria Aparecida Moysés, da Unicamp.
Para a psicóloga Maria Inez Ocaña de Luca, da ABD, não há exagero no aumento­ do número de diagnósticos de dislexia e hiperatividade, e sim um grande equívoco na interpretação dos dados. “Trata-se de descobertas recentes, conhecidas no Brasil a partir da década de 1980. É óbvio que houve um crescimento vertiginoso desses números, pois antes ninguém conhecia tais transtornos. Nosso trabalho foi esclarecer e ajudar a identificá-los, o que fez com que começassem a aparecer mais casos.” A psicóloga afirma também que o número de diagnósticos de dislexia já começa a diminuir. Segundo ela, atualmente cerca de 50% dos casos que passam pela ABD são encaminhados para outros tratamentos ao serem identificados sintomas de hiperatividade, autismo, deficiên­cia mental leve e problemas auditivos.
C.S.A. tem dislexia. Precisou de um laudo para fazer provas do vestibular de forma diferenciada e passou em várias universidades
Geração ritalina dislexia (foto: © João Correia Filho)

Maria Inez diz que na maioria das vezes os pais estão envolvidos no tratamento e são os primeiros a perceber se um medicamento está fazendo bem para seu filho – “pois eles acompanham suas reações na escola e em casa”. Ela aposta ainda na fiscalização feita por órgãos responsáveis pelo controle dos procedimentos médicos a possíveis casos de abuso.

Escola ruim

O aumento do diagnóstico do TDAH e dislexia, segundo profissionais, pode ainda maquiar problemas sociais e a queda da qualidade do ensino. “Tornou-se mais fácil pôr a culpa num distúrbio ou num transtorno do que enfrentar a baixa qualidade de ensino, principalmente nas séries iniciais. Hoje em dia, se uma criança é desatenta na escola ou em casa corre o risco de ser diagnosticada como hiperativa. Se ela não lê nem escreve nos primeiros anos de escolarização, já corre o risco de ser taxada de disléxica”, afirma Marilene Proença Rebello de Souza, professora do Instituto de Psicologia da USP.
Outro ponto levantado por ela é que diagnósticos de dislexia e de hiperatividade são “banalizadas e empregadas indiscriminadamente” toda vez que a criança não aprende ou não consegue se concentrar na aula. “É mais comum do que se imagina a criança ser encaminhada ao posto de saúde já com um bilhete da escola ‘diagnosticando’ que é disléxica ou hiperativa. E, assim, os alunos já são estigmatizados sem questionamento à forma ou ao processo de aprendizagem. Parece que virou moda ter esse tipo de transtorno”, critica Marilene.
Logo que diagnosticado como portador do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, aos 5 anos, Gabriel foi transferido de escola. “Ele não se interessava pelas aulas, não acompanhava o ritmo da turma, desligava, viajava mesmo”, conta a publicitária Gabrielle Chimento Massarão, mãe do garoto. Ela optou por uma escola com proposta pedagógica diferenciada, que permite que a criança tenha maior autonomia e faça mais experimentações, adotou a medicina antroposófica, modificou a alimentação e o comportamento de toda a família. “Decidimos não tratá-lo com medicamentos como a Ritalina. Em vez disso, assumimos o problema e estamos ajudando o Gabriel a melhorar”, diz. A nova escola despertou o interesse do garoto, que evoluiu no aprendizado. Os “apagões”, segundo a mãe, diminuíram.

Varredura

Para Marilene Proença, o excesso de diagnósticos remete ao começo do século 20, quando teorias da psicologia atribuíam­ a distúrbios cerebrais as dificuldades de aprendizagem, isentando problemas sociais e educacionais. “Nosso maior desafio não é apenas diagnosticar crianças, e sim lutar pela melhoria da qualidade da escola.”
Maria Inez Ocaña, da ABD, afirma que, para evitar equívocos, os casos de dislexia só devem ser atestados depois de uma varredura feita por psicólogos, fonoaudió­logos, neurologistas e mais uma série de profissionais de saúde que acompanham o paciente. “Eliminamos todos os outros fatores que podem causar o problema de aprendizagem, como deficiências auditivas­, na visão e até mesmo transtornos como o TDAH, que pode acompanhar a dislexia e agravar o quadro. Além disso, há um acompanhamento da situação escolar e familiar dos diagnosticados”, pondera a psicóloga.
Atualmente, laudos de dislexia servem como aval para que jovens tenham tratamento diferenciado em escolas e até mesmo no vestibular. C.S.A. (que pede para não se identificar), reprovado várias vezes em vestibulares, depois de um laudo médico que comprovava sofrer de dislexia obteve a autorização de algumas instituições para fazer seu exame de forma diferenciada – com mais tempo para as provas e com a presença de alguém que lê as questões e auxilia na conferência dos gabaritos. Com esses recursos, ele foi aprovado em várias universidades públicas importantes, como Unesp, USP e UFMG. Optou­ pelo curso de Geologia na Unesp de Rio Claro (SP).
No entanto, segundo Maria Aparecida Moysés, não faltam casos em que diagnósticos de dislexia e de TDAH são prejudiciais. Aos 12 anos, Marcelo (nome fictício) consultou-se com um neurologista num momento em que ia muito mal na escola. Depois de dois anos de medicação com Ritalina, a família descobriu que ele havia tido problemas de atraso no crescimento, o que lhe causava dificuldades até para fazer atividades físicas, uma de suas­ grandes paixões. Um acompanhamento psicológico mais aprofundado revelou que o adolescente  deixava os estudos em segundo plano porque desejava ser jogador de futebol. Em acordo com seus pais, prometeu se esforçar para terminar o ensino fundamental desde que pudesse se dedicar ao esporte. Parou com os medicamentos, concluiu os estudos e hoje, aos 14 anos,  joga num time de futebol de sua cidade. Nunca mais foi medicado.
Nos últimos anos, a discussão também entrou na esfera política. Atualmente tramita um grande número de projetos de lei para a educação, nos âmbitos municipal, estadual e federal, a propor que o tratamento e o diagnóstico de distúrbios de aprendizagem ocorram no interior das escolas públicas.
No município de São Paulo, por exemplo, tramita na Câmara dos Vereadores um projeto criado pelo Programa de Apoio ao Aluno Portador de Distúrbios Específicos de Aprendizagem. “A aprovação da lei representará um retrocesso significativo no enfrentamento das dificuldades de escolarização de nossas crianças e adolescentes. Isso porque reduz os problemas educacionais a uma suposta patologia do indivíduo, desconsiderando todo um contexto social e as consequências de gravíssimos problemas de estrutura e funcionamento de nosso sistema de ensino”, argumenta um manifesto difundido pelo Conselho Regional de Psicologia e assinado por dezenas de entidades do setor.
A pesquisadora Marilene Proença, também autora de diversos trabalhos sobre o tema, considera que esse tipo de projeto não melhora a qualidade da escola e reforça ações paliativas. “Desvirtua-se a ideia da escola de qualidade como direito de todos, e o direito passa a ser o de ter um diagnóstico”, critica.
Gabriel foi diagnosticado com transtorno de déficit de atenção. Gabrielle mudou o filho de escola,  reviu a alimentação e o comportamento da família

 

 

Peleja científica

Geração ritalina hiperativa (foto: © João Correia Filho)

Maria Aparecida Moysés, da Unicamp, vai mais longe. Considera que os critérios usados são frágeis: “É inquestionável que existam doenças reais, que existam problemas de saúde que podem interferir no desenvolvimento afetivo e cognitivo de uma criança, mas faltam critérios claros”, analisa. “A dislexia, por exemplo, é definida como uma dificuldade de aprendizagem de origem neurológica, que afetaria a fluência correta na leitura. Para diagnosticá-la, os principais instrumentos utilizados são provas de leitura e escrita, o que impossibilita a diferenciação entre pessoas­ mal alfabetizadas e pessoas com uma doença neurológica de fato.”
Segundo a pediatra, entre os próprios médicos não há unanimidade sobre a existência desses distúrbios, ou seja, a dislexia e o TDAH ainda não foram comprovados cientificamente, sendo questionados no interior da própria medicina em todo o mundo. No site da ABDA, o psiquiatra Paulo Mattos defende a existência do TDAH de forma contundente: “Quando você ouve alguém dizer que TDAH é uma doença inventada, por mais eloquente que seja o autor dessa opinião, sem qualquer base científica, ou mesmo a sua titulação – a incapacidade e leviandade sempre foram democráticas: também acometem médicos, psicólogos etc. –, pesquise sobre a veracidade e a origem do que está sendo dito”.
Outro ponto em questão são os efeitos colaterais provocados por medicamentos que têm o metilfenidato como princípio ativo. A ABDA argumenta que “os mais comuns são inapetência, insônia, irritação gástrica e dores de cabeça, que ocorrem numa minoria de pacientes e, quando ocorrem, tendem a desaparecer em poucos dias ou semanas. Não há efeitos colaterais ‘perigosos’, como tonteiras, taquicardia etc.”.
A pediatra Maria Aparecida Moysés lembra, entretanto, que na própria bula da Ritalina são listados efeitos colaterais como febre alta, dor no peito, batimento cardíaco acelerado, garganta inflamada e espasmos musculares. “Isso já seria o suficiente para ter muito cuidado ao receitar”, afirma. “Muitas vezes o fato de uma criança medicada estar mais quieta pode ser considerado pelos pais e pela escola como um sinal de que está reagindo bem, está mais concentrada. Mas pode estar ocorrendo o que chamamos na farmacologia de efeito zumbi, ou seja, as crianças ficam paradas, contidas, como se estivessem quimicamente amordaçadas.”
O fato é que não se pode desprezar o risco de haver um transtorno ou distúrbio que afete o aprendizado. Tampouco o ambiente social e educacional da criança pode ser precipitadamente isento de responsabilidades. Qualquer que seja o desdobramento de um caso, identificar uma dificuldade e buscar o diagnóstico correto exigem um esforço coletivo que vai até a procura por especialistas de áreas­ diversas. Porém começa­ com o empenho dos pais.