domingo, 20 de fevereiro de 2011

Da boca pra fora

A gagueira, distúrbio da fala abordado no filme O Discurso do Rei, continua a ser tratada como piada ou ‘problema emocional’

19 de fevereiro de 2011 | 15h 26

IVAN MARSIGLIA
Mu-mu-mulher, em mim fi-fizeste um estrago/ Eu de nervoso estou-tou fi-ficando gago/ Não po-posso com a cru-crueldade da saudade/ Que que mal-maldade, vi-vivo sem afago/ Tem tem pe-pena deste mo-moribundo/ Que que já virou va-va-va-va-ga-gabundo/ Só só só só por ter so-so-sofri-frido/ Tu tu tu tu tu tu tu tu/ Tu tens um co-coração fi-fi-fingido.

O samba Gago Apaixonado, composto por Noel Rosa em 1930, fala de alguém que gagueja por amor, mas no futuro talvez venha a ser objeto de polêmica semelhante à que envolveu o livro Caçadas de Pedrinho (1933), de Monteiro Lobato, acusado de trazer referências preconceituosas. Não é de hoje que a gagueira humana inspira um misto de chacota e piedade. Em 1866, a ópera The Bartered Bride, do checo Bedrich Smetana, colocou no meio da cantoria um tartamudo que divertiu plateias inclusive no Brasil. E Gaguinho, personagem do desenho animado Looney Tunes, dos estúdios Warner Bros, faz rir gerações de crianças com o bordão: “É isso aí, pe-pessoal!”

O filme O Discurso do Rei, do britânico Tom Hooper, que acaba de estrear no País, vem - com o perdão do trocadilho - mudar esse discurso. Com 12 indicações para o Oscar, incluindo a de melhor filme e diretor, conta a história verídica do rei George VI. Inseguro e com problemas de fala, foi obrigado a assumir a coroa quando seu irmão mais velho abdicou do trono para se casar com uma plebeia. Com a Inglaterra à beira da 2ª Guerra Mundial, o novo monarca, vivido por Colin Firth, recorre a um nada ortodoxo terapeuta australiano, Lionel Logue (encarnado por Geoffrey Rush), para encontrar a oratória de que necessita para motivar seus súditos em um momento tão dramático.
“O Discurso do Rei está para a gagueira assim como Rain Man esteve para o autismo”, diz a fonoaudióloga paulista Ignês Maia Ribeiro, presidente do Instituto Brasileiro de Fluência (IBF), fazendo referência ao sucesso de bilheteria de 1988 estrelado por Dustin Hoffman e Tom Cruise. O IBF se dedica à pesquisa e ao tratamento do distúrbio e recebeu, em dezembro último, o selo de acreditação da Organização dos Estados Americanos (OEA), concedido a entidades da sociedade civil com serviços de relevância prestados à comunidade internacional. Ignês, que sempre detestou reality shows, tem comemorado também, alto e bom som, a atual edição do Big Brother Brasil. Tudo por causa de Diogo, o coreógrafo baiano gago, que reage com altivez às brincadeiras e provocações dos colegas de confinamento. No dia 14 de janeiro, o brother chegou a citar no ar o slogan da primeira campanha nacional organizada sobre o tema no País, ainda em 1995, que clamava: “Gagueira não tem graça, tem tratamento”. Pena para a causa que Diogo seja tão chato.

Excesso de dopamina

 Calcula-se que existam no mundo cerca de 60 milhões de gagos. No Brasil o problema incide sobre 4% a 5% da população. Um dos mitos que mais reverbera sobre a gagueira é o de que ela tem origem emocional e está relacionada à ansiedade ou ao nervosismo - o que talvez explique a desenvoltura com que se brinca com o tema. Na verdade, gagueira é um distúrbio de base neurofisiológica, com forte componente genético e hereditário. Estudos demonstraram que a falha que ocorre entre o que a pessoa pensa e a resposta de suas estruturas cerebrais responsáveis pela área motora da linguagem pode estar associada a uma produção excessiva de dopamina - o contrário do que ocorre com o portador de mal de Parkinson, cujo cérebro produz pouco desse neurotransmissor. “A gente já entende o mecanismo, já sabe onde está essa falha, mas não por que ela acontece”, explica a especialista gaúcha Anelise Junqueira Bohnen.
Mestre em Fonoaudiologia pelo Ithaca College, nos EUA, com passagem pela prestigiada Stuttering Foundation, Anelise afirma que a crença de que se gagueja por razões psicológicas atrasa o diagnóstico e prejudica o tratamento. Em geral, os primeiros sinais aparecem aos 2 ou 3 anos, quando a criança começa a falar. Nesse momento, é comum ela apresentar algum tipo de dificuldade. Mas, se os problemas de fluência na fala durarem mais de oito semanas, convém os pais buscarem uma avaliação médica. “Depois dos 12 anos, quando acaba a fase de crescimento cerebral, as possibilidades de remissão total da gagueira são menores e ela pode se tornar crônica”, alerta a autora de Sobre a Gagueira (Unisinos, 2005).

‘Espera que passa’

A paranaense Sandra Merlo, de 31 anos, é uma exceção gritante. Nascida na interiorana Pato Branco, município de 75 mil habitantes no sudoeste do Estado, filha de pai caminhoneiro e mãe professora, começou a gaguejar aos 3 anos, mas só encontrou tratamento adequado, e por conta própria, aos 18. A memória mais antiga que tem do problema é da pré-escola, aos 6 anos. “Eu me lembro de querer perguntar alguma coisa à professora e desistir por medo de falar”, conta. Em casa, a gagueira da menina era atribuída ao ciúme provocado pelo nascimento do irmão mais novo. E a palavra final do médico da família foi “espera que passa”. Evidentemente, não passou.
Foi só aos 10 anos que ela soube, por um professor, da existência de profissionais especializados no assunto. Aos 14, Sandra decidiu ir a um posto de atendimento do SUS e preencheu sozinha a ficha solicitando tratamento. Chamado pela enfermeira, o pai foi até o local e finalmente autorizou. A médica encarregada, no entanto, era da área de audição e pouco pôde fazer para ajudá-la.
Na adolescência o problema se agravou e Sandra viveu aos 14 o pior ano para sua fala. Mas, ao contrário do que acontece com boa parte dos que sofrem com o distúrbio, porém, tinha menos dificuldade em se expressar quando estava apaixonada. “Fico mais fluente se estou motivada”, ri.

Eis outra característica da gagueira que reforça o coro dos que acreditam que tudo é questão de temperamento ou personalidade: a frequência e a intensidade de suas manifestações variam de acordo com a situação. Em geral, ela afeta mais a fala espontânea do que a ensaiada. É menos perceptível quando a pessoa está cantarolando. E fica mais aguda se a situação é tensa, há alguma situação de inferioridade em relação ao interlocutor ou uma grande plateia presente - aí, sim, como registra o filme de Tom Hooper, concorrem fatores emocionais.
A pessoa com gagueira aprende a disfarçar seu problema, seja trocando palavras mais difíceis por mais simples ou conversando o mínimo possível. “Muita gente me achava tímida na escola, mas eu não era tímida da maneira que eles acreditavam”, conta Sandra Merlo que, aos 15, decidiu o que seria na vida: fonoaudióloga. Aos 18 passou em três vestibulares: da Universidade de São Paulo, da Unesp e de uma instituição pública de Porto Alegre cujo nome prefere não dizer. “Fui recusada no teste de aptidão. A coordenadora do curso disse que o fonoaudiólogo deveria ser um exemplo de comunicação”, lamenta.

Discurso em Tóquio

Sandra optou pela USP e veio sozinha para São Paulo. Hospedou-se em um pensionato para moças no bairro do Rio Pequeno até conseguir vaga no Crusp, a moradia de estudantes da Cidade Universitária. Aplicou-se simultaneamente aos estudos e ao tratamento de sua gagueira com uma profissional indicada pelos colegas. Seu caso foi considerado grave pela doutora. Aos poucos, com os exercícios, juntou na mesma narrativa as duas pontas dessa história. Tornou-se uma especialista no próprio problema. Atende em um consultório no bairro da Vila Olímpia, onde a maior parte dos pacientes é gaga, e conclui um doutorado sobre o tema na Unicamp.
“Acho que minha convivência com a gagueira foi sendo organizada e ganhou sentido com o conhecimento que adquiri na faculdade”, acredita ela, que ainda gagueja, de maneira sutil, mas perceptível. O que não a impede de participar de congressos internacionais da área, o último deles no Japão, em setembro, onde apresentou seu paper em inglês fluente.
Sandra terminou recentemente um namoro de oito anos e está solteira. Em uma cena de O Discurso do Rei, a mulher de George VI, interpretada por Helena Bonham Carter, declara a ele sempre ter achado o seu tartamudear “um charme”. Mas este não é exatamente o tipo de elogio de que a fonoaudióloga paranaense gosta. “Ouço isso sempre, mas soa um tanto estranho para mim”, avisa.
De toda maneira, assim como o protagonista do filme que disputa o Oscar neste ano, Sandra Merlo parece perfeitamente reconciliada com a sua fala. Como se ela repetisse a resposta dada pelo rei a seu terapeuta vocal,Lionel Logue, quando este faz um bem-humorado reparo a uma hesitação no antológico discurso de guerra que George VI acabara de proferir: “Eu tinha que gaguejar um pouco para eles saberem que era eu”.

Fonte: http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,da-boca-pra-fora,681834,0.htm

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